sexta-feira, 15 de julho de 2011

Por detrás dos olhos de Christiane...

    ...Encontramos a mais bela e perfeita demonstração do que o gênero fílmico conhecido como “Terror” deve nos proporcionar. Christiane, seus olhos e sua mascara, como também sua camisola branca e comprida, fazem parte de uma película chamada “Les Yeux sans visage”, que em bom e claro português pode ser traduzido como “Os Olhos sem Face”.
Poster do filme à época (1959).
       Estranho. Um Filme etiquetado como pertencente ao mundo do Terror originário da França. Foi a minha primeira impressão preconceituosa, como se o grande Cinema francês, a qual, que fique claro, sou fã, não pudesse ter criado suas películas com o fio condutor do medo e do horror.  Causando-me mais surpresa ainda, tratava-se de uma obra de 1959, dirigida por um cineasta de nome Georges Franju, que havia fundado a Cinemateca francesa, com seu amigo Henry Langlois e Jean Mitry em 1936.

O Jovem Georges Franju na direção de " Olhos sem Face".
        A Cinemateca francesa se tornaria primordialmente o grande palco dos debates cinematográficos de Paris, onde convergiam as grandes expressões do cinema francês de outrora, e aprendizes dispostos a aprender com aqueles mestres; todos juntos com um proposito claro de restauração e preservação de filmes mudos ou tidos como perdidos, em grande parte dos Irmãos Lumiere e de Georges Melies, grandes patronos do Cinema Mundial.
        Só por isso a Cinemateca já justificava o seu culto. A Questão é que esta conseguiu se superar em seu estatuto existencial. Mais tarde, ao fim dos anos 1950, e inicio do acalorado anos 1960, ela se tornaria o grande palco de debates e de efervescência cultural de todo o país, quando a França se via revolucionada pela ação juvenil, pelas forças estudantis, e, sobretudo, por um novo paradigma cultural e porque não filosófico, que seria refletido na aclamada Nouvelle Vague, ou Nova Onda Francesa.
        Com a Nova Onda, os diretores, roteiristas e cineastas franceses em geral que pertenciam a esta tendência, subvertiam toda a ordem social, refletiam nas telas o que a efervescência juvenil carregava em estandarte nas ruas de Paris. Toda a estrutura clássica do filme passava a ser rompida; o fluxo linear era substituído pelo campo dos sonhos, o real era invadido pela ilusão, e a Poesia podia ser alimentada pelo Terror. Não havia dimensões impossíveis para esse movimento.


A Agitação popular e intelectual era comum diante da Cinemateca.

         É daí então que a nossa película em destaque acaba ganhando toda a sua carga fantástica. Se a poesia podia se alimentar do Terror, e o Terror podia ser descrito em linhas poéticas, talvez nunca na história do Cinema, houve uma obra poética tão surreal e fabulosa como “Olhos sem Face”.
      Georges Franju é um poeta da beleza escondida nas sombras do Horror. Isso é tudo que vemos em sua película.  Nesta, Franju, executa toda a sua genialidade de anos no meio cinematográfico, para levar à cena a adaptação fílmica de um aclamado romance francês de mesmo nome, escrito por Jean Redon. Não é um filme de terror como nos acostumamos hoje em dia. Não há sangue correndo em demasia, muito menos tripas escorrendo. A Obra recorre ao estatuto do Terror em sua essência máxima, quando assustar significa atrair o expectador e pegá-lo de surpresa na hora mais improvável: a Hora do Susto.
        O Medo se incrusta em cada quadro do filme, cada caminhar de seus personagens, cada dialogo traçado, em todo o delinear da trama. Esta é a grande sacada do filme. É uma Poesia do Terror vivo, do horror sublimado. Para assustar não é necessário sangue, tripas, ou todo tipo de nojeira em geral como nos acostumamos a ver no gênero slasher; mas sim basta deixar o dito falar pelo não dito. Ou o não dito, expressar o dito. Enfim, o terror está no que está para acontecer, e no que está em suas entrelinhas.
        Particularmente, eu nunca vi nada igual. Alguns podem considerar exagero da minha parte. Garanto o meu respeito às opiniões adversas; mas minha aclamada postagem se baseia no que considero um primor de resgate do terror e/ou suspense como forma de expressão das agruras da humanidade, ou como face até do real, do passível de se tornar vivo, como bem era retratado, por exemplo, nas obras de Edgar Allan Poe.

Edgar Allan Poe era o Poeta da Morte e do Terror.
         Por isso tudo é que Christiane me assusta muito mais do que Jason ou Freddy Krueger. Aquela magrela menina, de media estatura, de pernas finas, de olhar doce, chorosa e de caminhar adolescente, é o terror vivo da existência humana. Sobre estas considerações é que a película irá se justificar.

Christiane: Como esta jovem poderia assustar?

        Enfim, se a curiosidade deve se centrar no filme a este momento, eis então que rapidamente, ainda que com toda dificuldade possível, tentarei então abordar alguns pontos importantes da obra. Em primeiro lugar, a fotográfica e os quadros do filme por durante todos os seus noventa minutos de execução, são fantásticos. A Trilha sonora de do francês Maurice Jarre é sensacional, causando a cada minuto, a partir de uma balada de horror, um tormento incomensurável.

Maurice Jarre e sua música atormentadora.
         Não quero me alongar muito mais, vou direto ao centro da história. Esta, narra a triste história da família Genessier, que após um acidente de carro, acabam tendo toda a sua trajetória transmutada. Christiane, filha do aclamado cirurgião plástico Dr. Genessier, acaba tendo sua face desfigurada neste infeliz acidente do destino. Bela jovem era ela. Agora sua face não era mais do que uma carne crua e queimada.
O Cirurgião e Pai de Christiane: Dr. Genessier.
         Não, isso não nos aparece no filme. Somos poupados. E por este artificio é que o filme se torna cada vez mais acabrunhante. A Cada minuto queremos ver o rosto da bela Christiane. Deparamo-nos então com, talvez, o maior efeito de terror de todo o filme: Uma mascara, aparentemente de silicone, ou qualquer material cirúrgico. Ora, uma mascara incolor poderia assustar?! Sim, e muito!

Uma Mascara sem expressão.

       Na película há sempre um jogo entre a escuridão da casa dos Genessier e o andar fantasmagórico de Christiane com sua mascara protetora que muito lembra os efeitos obscuros do Expressionismo Alemão, com obras como " O Gabinete do Dr.Caligari", de Robert Wiene, rodado em 1920, que certamente inspirou o jovem Georges Franjou nos tempos de Cinemateca . 

O Jogo da Escuridão no " Gabinete do Dr. Caligari": Traço fortíssimo do Expressionismo Alemão.
Christiane na escuridão de sua mansão: A Claridade estava somente no seu rosto e na sua manta fantasmagórica.

            Mas eu sei que devem estar me perguntando: Qual o fio condutor da obra?! Sim, acontece que o Dr. Genessier, inconformado com a atual situação da filha, uma jovem agora sem futuro, desolada naquela Paris onde pululava a beleza e o ardor da juventude, aquela sua menina confinada dentro de sua enorme mansão, vai então elaborar uma maneira cirúrgica, obviamente antiética, para retirar a pele facial do rosto alheio e transportá-lo para sua filha, sem que este corpo novo a recuse.
      Obviamente que esta “transferência de pele facial” não se daria de forma pacifica. Para isto, o Dr. Genessier se utiliza dos dotes de sua fiel enfermeira, a belíssima Louise que vai até Paris para aliciar jovens e belas garotas cujo tipo físico facial se assemelha ao de Christiane. Aqui há outra grande sacada do cineasta Franju: Nestas situações, há sempre uma situação de lesbianismo sempre dissimulada. Louise vai até os cafés de Paris, até os cinemas, e sempre através de uma palavra doce, consegue atrair a todas as jovens para seu nefasto fim. Apesar disto, como em todo o movimento da Nouvelle Vague, Franju também em sua obra dá a mulher um papel crucial e de destaque em toda a película. Aliás, elas são o centro de tudo. 
Louise: A Sedução e a Morte em um dissimulado lesbianismo.

          Louise é uma mulher decidida, e todas as jovens que por ela são aliciadas, são jovens garotas com dezoito anos, sozinhas em Paris, assistindo filmes no Cinema – Uma Metalinguagem assumida – curtindo a vida e a liberdade sexual a todo ardor comum na Paris à época. Em outros momentos, também veremos como a mulher será retratada em toda a sua liberdade possível, ainda que em situações complicadas.
         Após aprisionar estas jovens, o Dr. Genessier começa as suas experiências, que sempre acabam mal fadadas. Nenhum daqueles rostos, ou daqueles tecidos, consegue se adaptar ao rosto de Christiane, que sempre acaba necrosando, e fazendo com que aquela volte a usar sua mascara tão simples, e ao mesmo tempo, tão metaforicamente horrenda. E à medida que os insucessos ocorrem, o cirurgião cada vez mais se desespera. Na mesma proporção são os cadáveres acumulados e enterrados em um tumulo onde supostamente estaria enterrada a sua filha Christine. Sim, isto porque após o acidente, o cirurgião fingira que sua filha havia morrido, para em sua paz, tentar reconstruir, sem tormentos, a vida daquela.

O Rosto perfeito da bela Chistiane após uma das muitas cirurgias...

Contudo a Necrose vem logo em semanas...
E com isso também a decepção de seu pai e sua mascara novamente..
       Paralelamente a esta vida particular, Genessier é um médico aclamado, palestrante, e um ótimo cirurgião. Em algumas cenas vemos como ele é atencioso aos pacientes do Hospital em que trabalhar. É um sujeito frio, mas correto. Este também é um ponto fortíssimo da obra. Genessier é humano, não é um personagem estereotipado, sem caráter e com a maldade aflorando a alma. É um homem atormentado pelo amor a sua filha, e cada vez mais pragmático em seus objetivos. Difícil de aceitar e justificar eu sei, mas enfim, é o que Genessier acaba se tornando.

Genessier: Um otimo pai e um excepcional médico. Um ser humano.
           Seus planos passam a se encontrar em dificuldade, quando a jovem Christiane não aguentando mais o enclausuramento naquela mansão escura, fria e doentia, acaba ligando para seu antigo namorado, também médico e auxiliar de seu pai, e a duras palavras assobiadas de fundo de suas cordas vocais, pronuncia: “Jacques...”. 

Ao telefone, o suspiro: "Jacques.."
           Cena fabulosa e agoniante esta, de forma que o filme então entra em sua fase final, quando a polícia começa a investigar indícios sobre a vida particular do cirurgião e o sumiço das moças de Paris; enfim, o que poderia haver de comum. 
         Neste momento uma jovem também belíssima chamada Paulette entra em ação. Esta é uma libertina jovem, que em sua cena inicial é demonstrada em apelos na cadeia para ser libertada. Para então o ser, o investigador arma um esquema para ela se colocar dentro do Hospital do Dr. Genessier visando descobrir algo. 
         Nenhum resultado para a Policia, mas ela acaba sendo também aliciada sem perceber por Louise na saída do hospital. Enfim, em uma das cenas mais fabulosas do filme, ela se acorda em uma maca de operação na casa do Dr. Genessier, e caminhando como um fantasma alucinado caminha a jovem Christiane atormentada. Aos gritos, Paulette lhe suplica a vida, pensando que encontraria a morte. 
       Mas a surpresa acontece: Christiane a solta, e ainda por cima assassina Louise e solta uma enormidade de cachorros – que eram utilizados por seu pai em larga escala para experimentos científicos – que acabam atacando seu pai o Dr. Genessier, e em um final belíssimo e absurdamente poético, Christiane com sua mascara, caminha nos jardins de sua mansão, e em seus ombros, pombos também libertos por ela, a seguem para um caminho que não se sabe qual destino.

Os cachorros experimentais são soltos: O Dr. Genessier pagará por seus pecados.
E os pombos apesar de libertos, não querem largar Christiane: Ela também desejou voar dalí.
Foi então que ela voou, mais sozinha do que nunca: Com sua face branca e vestidos brancos compridos.
            Enfim, como se pode perceber, o enredo não é nada fora do comum, mas, o absurdo e fantástico é justamente o modo como isto tudo é levado a cabo, cena a cena, dialogo a dialogo, respiração a respiração. Os diálogos são altamente significativos, as explosões de sentimentos, os rompantes de agonia de Christiane, a anunciação da violência por parte de Dr. Genessier sempre se anunciando, são algumas características que irrompem da obra para estas simples e descomedida postagem.
        Não há mais nada o que dizer. Até porque não consigo ultrapassar mais.
Dos Olhos mascarados de Christiane se anuncia a menção de que você deve assistir a película para entender, concordar, ou refutar tudo o que foi dito acima. Só não deixe de assistir, e tirar suas próprias conclusões sobre este filme surreal e fantástico filme de terror cujo enredo pode ser tão próximo a nossa realidade, ou sobre um filme de terror que não causa muito medo.
Christianne: Grandes olhos em destaque em meio a escuridão e a brancura.
        
         De uma coisa eu sei, esta película me agradou demais. Agora, pode ser que ao ver uma pessoa com mascara de silicone eu sinta ou não medo, mas, pensarei sempre, que por trás da mascara, os olhos agonizantes de Christiane podem estar à espreita. Espero, que por detrás da fantasia e de frente a realidade, nunca que me apareça na vida, verdadeiros olhos sem face – Les Yeux sans visage. 

Ass: Rafael Costa Prata
Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe.

Um comentário:

  1. Nossa Rafa conseguiu me deixar sem ar. Aguçou minha curiosidade, e me deixou doida para ver esse filme.

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