sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Faces/Traços da morte (1980-1990) e o auge do shockumentary: o sadismo na exibição da brutalidade humana em sua face mais crua e fria

Lembro-me muito bem quando ainda criança, na segunda metade dos anos 1990, caminhava com meus primos até a locadora de vídeos do meu bairro e com a naturalidade típica de toda criança, perguntava a atendente: “Moça, Traços/Faces da Morte tá “locada”?!”
Eu não devia puder alugar aquelas fitas. Mas dinheiro é dinheiro, e a dona da locadora parecia mais preocupada em alugar as suas fitas, do que em refletir sobre os efeitos nocivos causados pela permissão dada a crianças em relação à VHSs que não deveriam ser vistas.
Mas era moda. E foi durante algum tempo. Estamos na maturidade do chamado shockumentary, um gênero que consistia na produção de uma série de documentários que procuravam retratar com a maior fidelidade e frieza possível a realidade da brutalidade humana, sem retoques. 

Com essa premissa, durante os anos 1980, alguns cineastas percorreram o mundo no intuito de recolher filmagens que exibissem imagens reais de diversas situações de morte humana ou animal. Assim, imagens de mortos em regiões de guerra, acidentes aéreos ou naturais, execuções, assassinatos, e etc, eram recolhidos e compilados para fazerem parte de uma série de documentários que marcaram a infância daquelas crianças que contaram com, além de sua curiosidade mórbida, a negligência das atendentes das locadoras de seus respectivos bairros: faces/traços da morte.
Tais documentários, que começaram a ser produzidos em 1979, possuíam o modelo idêntico: a exibição em série de mortes de todo tipo, das mutilações aos efeitos das guerras, sempre contando é claro com uma narração mais do que “macabra” e com uma trilha sonora de death metal.
Obviamente que sua exibição acabou por ser proibida em muitos países. A capa do VHSs das mesmas ao anunciar “Proibido por mais de 40 países”, acabava por aguçar mais ainda a curiosidade das crianças que, na imaturidade da idade, não sabiam distinguir entre o sádico e o fantasioso dos filmes de terror.

E foi assim que uma série desses filmes Traços/Faces da Morte perpassaram todos os anos 1980 e 1990, apresentando cenas reais e macabras de todo tipo: imagens daquele acidente aéreo, daquela execução no Líbano, daquela pessoa que se jogou de um prédio em chamas...  daquela guerra...De tudo!
Mais de dez sequencias foram produzidas dessa franquia Traços/Faces da Morte, sem contarmos é claro, uma série de outros documentos que no bojo desse “sucesso”, surgiram durante essas décadas.
O sentido em assistir a algo do gênero? Não sei responder. Não posso negar que durante a minha infância tais documentários eram encontrados na mesma “sacola de fitas locadas” na qual perfilava Jaspion e Rei Leão, quase quê sem distinção. E a gurizada se reunia para assistir.
Talvez certa sádica sensação de conforto provocada pela distância em relação ao que se estava assistindo – ainda que a morte seja tão próxima a todos – explique isso.  Ou nada explique. O Sadismo, quem sabe. Ou o modismo, e a vontade das crianças que, acostumadas a assistirem a uma série de filmes de terror, se sentiam curiosas para observarem “algo mais além” da ficção dos filmes.

Até hoje é possível encontrar tais documentários disponíveis pela internet, na forma de download.  Nunca mais tive coragem de clicar num dos links que os disponibilizam. A idade não mais permite. O senso de realidade chegou, e a “falta de noção” da infância se foi.
No fundo, às vezes penso que, permanece o medo de que, diante do estado das coisas atuais, na qual a violência e sua exibição fria em todos os meios se torna uma constante, ao reassisti-los, da minha parte não transpareça nenhuma reação.  O Shockumentary da estante da locadora do meu bairro, agora é o jornal da TV diária. A violência fria e crua, eis o gênero de maior sucesso da humanidade.

Att. Rafael Prata
Mestrando em História pela Universidade Federal de Sergipe

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